segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Rotina

Rato de Biblioteca
      Lúcia desperta e emerge de profundos sonhos. O rádio-relógio, que ganhara de seu neto, despertara pontualmente às cinco e meia. Manhã fria, naquele inverno que teimava em não acabar, um dia qualquer (os dias são sempre iguais) de 2013. Lúcia mergulha no revigorante vapor do chuveiro quente. Café da manhã sem ninguém para conversar, como sempre. Havia já se acostumado com isso. Solidão. Nem pensa mais: acordar, banho, café, cigarro, chaves, porta fechada, rua, ponto de ônibus. Manhã fria, mãos geladas, e o ônibus que não vem. “O Cassino me deprime no inverno!”, pensa, enquanto coloca as mãos no bolso e olha para aquelas pessoas que também estão ali, esperando, como ela, há decênios. No caso de Lúcia, trinta e poucos anos. Ainda não conseguira comprar o carro.
      “Finalmente!”, pensa, enquanto sobe, e se felicita por encontrar um lugar vago, ao lado de outra professora, como ela.
      -E aí, colega, menos um dia! – exclama Vera.
      Mulheres já fartas de dias, trabalhando repetitivamente, sempre as mesmas coisas, acordar, banho, café, cigarro, chaves, porta fechada, rua, ponto de ônibus. Lúcia trabalhava há mais tempo, logo, se aposentaria mais rápido, ou menos lentamente.
      Ônibus lotado. Em pé, ao corredor, uma gorda mulher roça a barriga e as mamas na cara de Lúcia. Já estava acostumada, a velha professora, que pelos menos enfrentaria a mesma viagem de trinta e poucos anos, sentada. Já sabia até o perfume da imensa mulher: Topaze, puro álcool. Por falar nisso, os bêbados. Muitos, sempre. Todos empilhados, uns sobre os outros, com suas bocas desdentadas e hálitos oriundos diretamente de estômagos inundados por espíritos. O ônibus para, sobem mais pessoas, idosos que se acotovelam na frente, pois a passagem é gratuita. A cada freada, alguns corpos caem no corredor. Todos os velhos com praticamente o mesmo destino, o médico, o hospital, a farmácia. E todos com as mesmas manhãs, acordar, banho, café, cigarro, chaves, porta fechada, rua, ponto de ônibus.
      Crianças, muitas crianças, rumo às escolas em que se pratica a mentira: o fingimento do ensinar e o fingimento do aprender.
      O motorista cumprimenta todas, conhece uma por uma. Parece até que frequenta suas casas, mas na verdade isso se deve à monotonia da pequena viagem de todas as manhãs, de todos os rostos e hálitos e corpos obstruindo o corredor. Passam por um acidente. Todos silenciam. Olham pelos embaçados vidros do ônibus. Mistura de carnes e ferros retorcidos. Pessoas que provavelmente passaram pela mesma manhã de acordar, banho, café, cigarro, chaves, porta fechada, rua, ponto de ônibus e que agora não mais respiram e não mais sonham.
      “Espero que a gente não se atrase!”, diz Vera, muito preocupada com o acidente. Lúcia apenas lamenta e lembra-se que ainda não pagou o carnê das Casas Pompéia. “Não se respeita mais os sinais, olha só no que deu!”, reclama em alta voz o motorista, com ares de autoridade, que, para desviar do acidente, passa por cima de um cachorro distraído – pelo menos as pulgas sobreviveram, pois pularam a tempo.
      A gorda que esmaga a cara de Lúcia começa a tossir, e algumas gotas salivares caem em seus cabelos, que foram lavados tão caprichosamente pela manhã. Passa a mão, gesto automático, pelos cabelos e percebe a umidade. “Preciso abrir a janela”, pensa, pois o ar no ônibus está viciado. Ainda bem que falta pouco para chegar ao destino. Celulares. Muitos celulares. Todos tocam e jogam e conversam em seus celulares. O silêncio está cada vez mais escasso, principalmente em ônibus lotados cheios de janelas fechadas com gente tossindo nas cabeças dos outros.
      Finalmente o ônibus estaciona. Lúcia desce, frio, mãos nos bolsos. Até a Escola, uma caminhada de 300 metros. Cumprimenta as pessoas, alguns ex-alunos, que hoje são pais de seus alunos. Alguns aparentam estranheza, ao ver a velha professora: “Então ela não sabe?”, dizem alguns; “O que ela está fazendo aqui?”, perguntam-se outros.
      Lúcia para finalmente, diante da escola, sua escola, fechada, cartaz no portão: “Escola fechada pelo Governo”. Disseram alguns que era por poucos alunos. Outros disseram que era necessário que sobrasse mais dinheiro para construir presídios – assim, fecha-se a escola.
      Acordar, banho, café, cigarro, chaves, porta fechada, rua, ponto de ônibus... Hábitos quebrados, professores obsoletos, alunos inexistentes, escolas em decomposição. Pobre Lúcia, que retorna, e se aposenta, e se vê morta. 
Fim

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