segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O camarada Adão Veiga contribui com nosso blog com uma homenagem aos professores.

 
Um dia qualquer
Adão Veiga
            No pequeno relógio CCE preto, são exatamente cinco horas e trinta minutos. Odete, que ainda tem na mente lembranças de seu sonho com Paulo Zulu, decide levantar. Sempre às cinco e meia. Levanta-se e rápido choque percorre sua espinha – o piso, nesta primavera, ainda é frio. O chuveiro também não esquenta muito, não neste horário, ainda tão cedo, e nesta primavera, ainda tão recente.
            A toalha com a qual seca o corpo é lilás, com motivos florais e comprada na promoção. Veste-se. Sempre a perna esquerda primeiro, depois a direita, depois o braço esquerdo, depois o direito, o pé esquerdo e o pé direito... seis horas e quinze minutos. Sempre às seis e quinze sai Odete daquele banheiro que possui um chuveiro que nunca esquenta nesta época do ano.
            O odor quente do café espalha-se pelo ar, entra no corpo de Odete, que mastiga o pão, que cheira o café, que bebe o café. Os olhos procuram a bolsa. Bolsa professoral, cheia de conhecimento, de provas, de trabalhos, lápis, canetas de tantas cores, borrachas, régua, calculadora, três celulares, uns CDs comprados no camelódromo, um pente, uma escova, espelhinho, absorvente, batom, base, esmalte, um perfume da Avon e vinte e cinco centavos perdidos no forro.
            Odete coloca a bolsa no ombro e antes de sair lembra dos próprios dentes, pois é necessário escová-los. Volta assim ao pequeno banheiro. Diante do espelho, observa seu rosto. Qual idade a professora Odete aparenta? As rugas, as linhas de expressão, aquelas manchinhas debaixo dos olhos... Observa seu pote de Renew, que já está pela metade – é hora de comprar mais. Sem dúvida não aparenta mais do que cinqüenta anos. Apesar de ter quarenta.
            Fecha a porta às sete horas. Confere as chaves. Em quinze minutos chegará à parada de ônibus. Caminha com seus tênis brancos. A manhã está linda, ensolarada, já algumas flores surgem pelo caminho. Mas Odete não possui tempo para contemplar este mundo intenso, não pode perder o ônibus, por isso apressa o passo.
            -E aí, professora, pode entrar, que já vou dar a partida! – fala o motorista, como se estivesse esperando apenas a professora Odete, que responde com um sorriso elegante.
            A professora senta na janela, do lado esquerdo, do meio para a frente. Sempre na janela, e do lado esquerdo, e do meio para a frente. Logo mais o ônibus estará lotado. Um homem gordo, com hálito de cerveja barata, senta ao seu lado.
            O ônibus para, sobem pessoas. Para de novo, e sobem mais pessoas. É só o ônibus parar, que sobem muitas pessoas.
            Um rapaz com um grande boné estilo panelão escuta seu hip-hop no celular com o volume no máximo.
            -A senhora não quer descer na próxima, eu lhe ofereço uma bebidinha no bar do Almeidão! – diz, em tom de paquera, o gordo homem, salivando gotículas de cerveja.
            O ônibus diminui a velocidade. Há um acidente ali adiante. Odete olha pelo vidro sujo e observa uma mistura fumegante de carne e ferro, corpos atravessados por metais retorcidos. Corpos que também acordaram cedo, e tomaram banho, e beberam café, e escovaram os dentes, e saíram de casa, e tiveram planos e sonhos. Um policial contempla belíssima borboleta azul pairando sobre o volante do que sobrou do carro. Fuma, pensativo, com ar de quem filosofa sobre o porquê da existência.
            -Mais um acidente! Isso aí é gente que nem sabe dirigir! – esbraveja o motorista, preocupado, pois chegará atrasado com o ônibus. Ao falar, se distrai e atropela um cãozinho que por ali passeava.
            Ao olhar para o acidente, um passageiro quase chora, desnorteado:
            -E agora, se atrasarmos!... Eu tenho hora marcada, motorista!
            Odete, depois de algum tempo, vê o seu destino se aproximar. Assim, afasta o homem bêbado, que agora ronca e baba uma gosma fedorenta ao seu lado e que cai no seu ombro direito. Decide descer.
            Fora do ônibus, respira profundamente aquele ar tão saboroso com a satisfação que só os vivos conhecem. Olha para a frente. Mais uns vinte minutos de caminhada. “Bom dia, professora Odete!” – falam alguns, entusiasticamente. “Olá, professora!” – dizem outros. A todos Odete responde com um aceno ou seu sorriso elegante, que aos poucos se desmancha devido ao peso da bolsa tão repleta.
            Ao chegar na porta da escola, vê um rapaz, aparentando cerca de vinte anos, com uma espécie de aura de felicidade ao redor.
            -Professora Odete? – pergunta ele, com largo sorriso. – Posso falar um  minutinho com a senhora?
            Ao ouvir a voz do jovem, Odete vê em suas lembranças o rebelde. “Sim, ele mesmo!” – pensa. – “Este rapaz incomodava a todos na escola, vivia na ocorrência! Mas o que ele...”
            -Professora Odete! – diz ele, interrompendo os pensamentos da professora. – Lembra de mim? Eu vivia na sala da direção, assinando aquelas ocorrências... Nem minha mãe podia mais comigo! Até o dia em que a senhora foi lá em casa, lembra? Foi lá conversar comigo, deu-me um livro de presente e eu me senti tão... valorizado! Como a senhora sabe, eu mudei muito depois daquele dia. A senhora colocou diante de mim um futuro grandioso, e então comecei a estudar, estudar... concluí o ensino médio, já estou na faculdade e hoje eu sou concursado, professora. Concursado! Eu vim aqui lhe agradecer, pois a senhora simplesmente mudou a minha vida! – concluiu o rapaz, com lágrimas que começam a verter dos olhos agradecidos.
            Eles se abraçam, a professora, o aluno, o destino. Ao se despedir, Odete contempla aquele rapaz que agora se afasta e vai viver a vida. Pensa a professora em sua tarefa, em sua preciosa missão, interrompida nesses pensamentos pelo toque de uma suave mãozinha.
            Uma pequena aluna, de olhos brilhantes, enormes, estende a Odete uma flor, retirada provavelmente das margens de um córrego próximo.
            -Professora, quando eu crescer, serei que nem a senhora, viu? – diz a menina, que em toda a sua inocência ainda nada sabe sobre a gigantesca missão que paira sobre os ombros dos professores. Porém um dia fará a descoberta, como aconteceu nesta manhã tão corriqueira com a professora Odete.

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