Rato de Biblioteca
Certa manhã, em uma belíssima cidade com formato de libélula encravada no meio do nada, no interior de suntuoso edifício, dois cavalheiros discutiam. Uma sala com carpete francês de não pouca espessura, poltronas de couro inglês, enquanto conversavam tomavam finas bebidas, Mozart ao fundo. Refinamento, elegância e, precisamente do topo da cadeia alimentar, aqueles homens de fino trato observavam a miséria da família humana.
-Mas, Peçanha, - lamentava o primeiro, - Não podemos permitir que sejam aumentados os gastos com a educação! De maneira alguma!
-Não se atormente, meu caro Nóbrega! – fala o Peçanha calmamente, - Está tudo sob controle! Arranjaremos uma maneira...
-Como, Peçanha, como? Se mais dinheiro for gasto com livros, com aumento para os professores, cursos de qualificação... Sei não, o povo, meu caro... Começará a pensar, entende? Pensar! Isso é terrível!
Enquanto fala serve-se de seu uísque importado. No fundo, bem no fundo, Nóbrega é um bom homem. Apenas pretende continuar no topo. Mas para isso, precisa de votos, e votos de pessoas ingênuas. Já Peçanha, que está no mesmo barco, é bem mais maquiavélico, mais astuto. Tem planos, o velho Peçanha, e enquanto fala, ao som de Mozart, suas mãos traçam linhas imaginárias na atmosfera da luxuosa sala.
-Nóbrega, meu caro, tudo continuará como antes, já avisei! Vamos continuar bem aqui, no topo, não é isso o que queres?
-Sim, Peçanha, sim! Mas como?...
-É tão simples, meu caro... vamos continuar aqui, e o povo lá em baixo, graças à cultura que todos almejam!
-Não entendi! – Nóbrega era assim mesmo, custava a entender as coisas. Isso às vezes irritava Peçanha.
-Veja por exemplo o carnaval, Nóbrega! A festa do povo!
-A festa do povo! Sim, o povo que tanto amamos!
-Nóbrega, meu caro, a festa mais popular é o que, em essência?
-O momento em que o povo comemora? – Nóbrega pensa um pouco antes de responder.
-Isso, Nóbrega, mas comemora o que, precisamente?
-Comemora...comemora... o aumento do salário mínimo? – Na verdade Nóbrega não sabe a resposta, mas tenta assim mesmo não passar por ignorante.
-O aumento ridículo do salário, comemoram as CPIs, que dão ares de punição aos corruptos, comemoram os heróis do BBB...
-Uma vida sem problemas!
-Sim! – concorda Peçanha – uma vida sem problemas! Pois quem é que, em pleno carnaval, vai se lembrar da exploração dos burgueses, da falta de terras para os agricultores que querem realmente trabalhar, do esbanjamento do dinheiro público, quem, quem, meu caro Nóbrega?
-Hã... Ninguém?
-Isso, ninguém! Então, qual é a solução?
-Carnaval pro povo! Acertei? – pergunta Nóbrega.
-Quase lá! Música de baixa qualidade, pois é bom que eles continuem na mediocridade! Bebida, muita bebida, para que seu entendimento fique turvo, para que deixem de raciocinar, de pensar! E outra coisa, mais importante: corpos à mostra! Corpos semi-nus para que todos possam ver!
-Oba, gostei dessa parte, Peçanha!
-Muitas mulheres, de preferência mostrando suas carnes para as elites dos camarotes! Mulheres que, ao fazerem isso, apenas atestam que nada mudou da pré-história pra cá, mulheres que não passam de objetos à serviço dos desejos dos homens!
-Isso é ótimo, Peçanha! Vamos incluir também os homens, na verdade todos rebaixados, vivendo a vida da carne, homens e mulheres escravos dos mais baixos apetites! Maravilha!
-Sim, Nóbrega! E assim vamos todos, aproveitando ao máximo o carnaval, e não apenas o carnaval, também a Copa do Mundo, que não passa de uma competição entre os orgulhos nacionais para ver quem é o mais valoroso país na superfície deste grãozinho de poeira perdido no infinito universo...
-Enquanto eles disputam esquecem nossas falcatruas, Peçanha!
-E também o Big Brother, a novela... Enquanto tudo isso existir, Nóbrega...
-Ninguém irá sentir prazer em pegar livro algum! Ahahahah! Muito inteligente, Peçanha, muito inteligente!
-Alguma coisa até que eles poderiam ler, Nóbrega! Caras, por exemplo, é uma ótima revista! O mundo vip, o universo fashion! – enquanto caminha com seu uísque pela sala, Peçanha pensa alto – Ah, o corpo... o corpo é sempre uma ótima mercadoria! Concursos de beleza com meninas adolescentes, concursos de dança em bailes funk, rainhas de bateria de escola de samba; as pessoas aprendem a valorizar apenas a matéria, a carne... e assim vão ficando cada dia mais alienadas. Um dia, se a civilização continuar descendo nesse ritmo, poderemos colocar no lixo pra sempre a literatura, a filosofia, a música, até mesmo a política participativa! Será a glória! A glória!
Peçanha e Nóbrega riem, riem, gargalham com desvairamento. O faxineiro, sem entender o motivo de tanta felicidade, passa a vassoura enquanto assobia seu samba de enredo preferido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário