terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Zé e as outras coisas

Rato de biblioteca



Dia normal. Cidade antiga, prédios cinzas, fumaça, cães, lixo em calçadas, ruas estreitas e carros largos, buracos, ônibus e Brancos, muitos Brancos – eles estão em toda parte. Zé trabalha. Vai de ônibus ao seu ganha-pão. Serigrafia. Trabalho como outro qualquer. Vai de ônibus o Zé. Em pé, normalmente, apoiando-se nos outros muitos Zés para não se esparramar pelo corredor cheio de terra da nação papareia. Pela janela imunda percebe a rotineira procissão de todo o sempre: ônibus lotados de trabalhadores, todos em pé, abarrotando aquelas máquinas de transporte coletivo. Cada pessoa é uma coisa, ou um número. “Cada pessoa tem seu valor”, ele lê em um cartaz da Igreja Universal. Cada pessoa tem seu valor, isso mesmo, pensa Zé, cada um tem seu valor. Exatamente dois reais e vinte e cinco centavos, no momento.

Zé tem um papel social muito importante. Abastece com seus trocados os endinheirados donos do transporte, abastece com seu tempo e trabalho o endinheirado patrão da serigrafia, e com os impostos pagos quase em dia alimenta a família que comanda o esquema.

Zé chega ao trabalho, com cinco minutos de atraso. Seu Bonifácio, que tem um buraquinho bem no meio do queixo, xinga o pobre bicho. Grita impropérios, danações, maldiz o dia em que conheceu Zé, ameaças de toda fortuna, e o coitado só escuta. Fazer o quê? O ônibus demorou... Mas seu Bonifácio não quer saber de ônibus.

-Que acorde mais cedo! – grita, erguendo as mãos, para que os outros escravos também vejam que o seu Bonifácio é um homem de verdade.

Zé apenas trabalha. Trinta minutos para o almoço. Quinze minutos para o cafezinho. Se Zé tivesse noção, veria que faz 3500 vezes o mesmo gesto maquinal na empresa de serigrafia. Quando dorme, chega a sonhar que está trabalhando. Aos sábados também, principalmente em época eleitoral. Trabalho escravo. Qualquer dia o seu Bonifácio vai inventar de colocar um tronco na serigrafia. Só para eles verem quem manda.

Final do dia. Cansaço. Fome. Abatimento. Orgulho ferido. Cerca de vinte minutos de caminhada até o ponto de ônibus, Zé, que não sabe que é um herói, o único, o verdadeiro herói, percebe que está sem dinheiro. E agora, Zé?

-Por favor, o senhor sabe, eu fiquei sem dinheiro, o senhor não teria como me dar uma forcinha, sabe como é, para chegar em casa, entende?

O alinhado senhor, pasta executivo, terno risca de giz, gerente da companhia de ônibus, olha aquele esquálido homem de cima a baixo, mostra-se receoso, nunca se sabe, pode ser um assalto...

-Vai trabalhar, vagabundo! – suas palavras penetram e rasgam e consomem Zé.



Fim

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