segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Camila Vallejo: quem é esta garota?

Quarta-feira, 31 de agosto, ela estará em Brasília: a confirmação de que Camila Vallejo realmente viria para a manifestação que a União Nacional dos Estudantes organizava para esta semana na capital brasileira chegou ao Opera Mundi na forma de um despacho da Adital (Agência de Informação Frei Tito para América Latina), junto com uma breve entrevista com a líder estudantil que lidera as maiores manifestações políticas em andamento na região.
Era terça-feira, o dia já estava acabando, mas mesmo assim a redação se mobilizou: concluímos que tínhamos de ir a Brasília. Os colaboradores do Opera Mundi no Chile já estiveram com ela, já registraram suas palavras de ordem, a repressão que ela e os estudantes chilenos enfrentam, já contaram que ela não gosta de ser tratada como musa. Mas ainda assim a redação não estava contente.
Quando cheguei à sede do Banco Central, em Brasília, pouco depois das 9h da manhã, Camila Vallejo já estava sobre o caminhão de som da UNE. Discursava uma outra garota, de camiseta azul como a que ela também usava e minissaia branca. Mas não era Camila. Falava um português fluente. Mais tarde conferi a identidade, era Clarissa Alves da Cunha, estudante de ciências sociais da PUC-RJ e vice-presidente da UNE.
Em Brasília, líder estudantil chilena aproxima luta brasileira e a de seu país


Minutos depois, o microfone passa para as mãos da chilena. Camila, 23 anos, pouco mais de 1,60 m de altura e cabelos, não se intimida nem com o sol forte nem com a plateia brasileira. Usando também uma pochete na cintura e um boné na cabeça (lá de baixo só dava pra ver que ele era verde), fala firme em espanhol. Afirma que a luta chilena e a brasileira são semelhantes, pois buscam ampliar a educação pública nos dois países. Não diminui o ritmo, não simplifica o discurso, trata da violenta reação da polícia. E faz os manifestantes puxarem uma palavra de ordem em espanhol: . “¡Y/ va a caer/ va a caer/ la educación/ de Pinochet!” Pegou e cresceu. Um garoto cabeludo e de cara pintada empolgou-se e comentou com a colega a seu lado: “Ela quer unir os países, véio!”
A convite do presidente da UNE, Daniel Iliescu (que, em entrevista, relativizaria a aproximação feita por Camila, dizendo que a situação no Chile é pior que a brasileira, porque lá não existe o ensino gratuito como direito), estudante de ciências sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Camila desce do caminhão, empunha uma vassoura e participa da lavagem simbólica do Banco Central, no dia em que o Copom (Comitê de Política Monetária) anunciaria, ao final do dia e para a irritação do mercado financeiro, uma redução de meio ponto percentual na taxa de juros. Ainda é manhã, e baixar os juros era uma das reivindicações da manifestação, além da fixação de 10% do PIB como meta de gastos em educação pelo governo (o gasto público com o setor no país subiu de 3,9% do PIB em 2000 para 5% em 2009).
Camila retribuiu visita da UNE a Santiago comparecendo à Marcha dos Estudantes em Brasília


Camila acha engraçado, se deixa molhar e sobe de volta para o caminhão de som, que passa a se dirigir, à frente de 12 mil estudantes segundo os organizadores (5 mil segundo a PM), para o Congresso Nacional. Começa então a dar entrevistas. Novamente não se arrisca no portunhol, não faz concessões, cita não apenas o povo chileno, como também os índios mapuches (que vivem forte repressão por parte do Estado). E procura atender a todos.
“Não me considero feia”
A tarefa não é simples. Jornalistas dos mais diferentes veículos, de grandes e pequenos veículos, de direita e de esquerda, de jornais impressos, revistas e televisão querem falar com a “musa chilena”. E a pergunta, afinal, é inevitável: Daniela Paixão, do UOL Notícias, depois de conversar sobre as reivindicações e sobre a pauta comum com os estudantes brasileiros, pergunta se ela se considera bonita. Ela ri e responde: “Não me considero feia”, e emenda que não é essa uma questão importante. Segunda ela, a personificação do movimento chileno em sua figura e a tática de realçar sua beleza tem, na realidade, o objetivo de tirar o foco das reivindicações. Não atribui explicitamente ao machismo – e talvez ela tenha razão: em 1992, Lindbergh Farias, hoje senador pelo PT do Rio e então presidente da UNE e líder das manifestações que resultaram no impeachment de Fernando Collor de Mello, também tinha de responder a perguntas semelhantes

A líder estudantil faz um esforço adicional: procura explicar o sistema educacional chileno a cada jornalista que se aproxima. Não é uma tarefa simples. No Chile, o setor privado, pago diretamente pelas famílias ou subsidiado pelo Estado, concorre apenas marginalmente com o setor público. E, no ensino superior (Camila é presidente da Fech, Federação dos Estudantes da Universidade do Chile), mesmo o setor público cobra mensalidades. Para pagar o ensino, em toda a formação, um grande número de famílias chilenas recorre a financiamentos que, depois, não consegue pagar. É justamente esse um dos motivos pelos quais os protestos em Santiago reúnem centenas de milhares de pessoas – porque eles já não são apenas protestos estudantis: a pauta da educação pública ganhou uma parcela significativa da sociedade, e atualmente essas demandas são apoiadas, segundo pesquisas, por até 80% da população.
Ameaças
Camila é integrante do Partido Comunista chileno, que no primeiro turno das eleições de dezembro de 2009 obteve 6,2% dos votos. O partido elegeu três deputados e apoiou no segundo turno, em janeiro de 2010, o candidato derrotado da Concertação, Eduardo Frei (democrata-cristão, apoiado pelo Partido Socialista da ex-presidenta Michelle Bachelet), da aliança de centro-esquerda que governou o Chile após o fim da era Pinochet até o ano passado, quando o direitista Sebastian Piñera assumiu a presidência.

Os governos da Concertação, no entanto, também são alvo de Camilla: eles não puseram fim ao estado erigido sob o comando do militar Augusto Pinochet (1973-1990), que foi não apenas um dos mais violentos do continente no combate à militância de esquerda como também foi o que primeiro e mais profundamente implantou as reformas neoliberais defendidas por intelectuais como Frederick Hayek e Milton Friedman. O Chile foi o “laboratório” por excelência do neoliberalismo nos anos 1970. Educação, saúde, moradia, previdência: lá as privatizações foram tão longe que é difícil para os brasileiros imaginarem. Depois, esse modelo seria implementado em democracias mais ou menos estabelecidas: Reino Unido de Margaret Thatcher (1979 -1990), Estados Unidos de Ronald Reagan (1981-1989), Bolívia, Brasil, Argentina etc. Pinochet se foi, “mas persiste no Chile o sistema político-econômico de seu regime”, diz Camila. O pior, no entanto, é que, na sua avaliação, se os governos da Concertação não o revertera, o governo Piñera pretende aprofundá-lo.
O caminhão chega ao Congresso, e Camila desce para atender mais gente. Fila um cigarro, que demora a acender, e continua falando, em miniexclusivas que, rapidamente, são interrompidas por um outro jornalista que se aproxima. O repórter fotográfico contratado pela UNE, Vítor Vogel, reclama que ela não entrou no espelho d’água. “Ela tá ameaçada de morte”, lembra, dizendo que, se ela e o presidente da UNE tivessem mergulhado na piscina que fica em frente ao Congresso, a imagem percorreria o mundo. Camila já sofreu várias formas de intimidação. Uma página no Facebook pedia explicitamente sua morte e uma funcionária do ministério da Educação colocou no Twitter a singela frase: "Se mata la perra, se acaba la leva” (matando a cadela, acaba a ninhada). Seu endereço também foi tornado público. No dia 25 de agosto, um estudante de 16 anos, que conduziu o irmão numa cadeira de rodas, foi atingido por um tiro ao que tudo indica disparado por um policial, e imagens que correm o mundo mostram policiais chilenos abusando do uso de gás lacrimogêneo em ambientes fechados e de tiros com balas de borracha.
Trabalho de conclusão
Mais descontraída, Camila conta de sua trabalho de conclusão de curso. Está no último ano do curso de geografia. Tradicionalmente, explica em frente ao Congresso, o presidente da Fech interrompe os estudos para dirigir a entidade.
Mas seu objetivo, findo o mandato, é estudar como a vulnerabilidade ambiental está, também, condicionada pela vulnerabilidade social. Usando o caso concreto da região da Grande Concepción, ela quer entender como morar em áreas mais pobres ampliaram – “ou não”, faz questão de frisar, cientificamente – os riscos diante do grande terremoto e do tsunami que viveu o Chile em fevereiro de 2010. Suas fontes teóricas principais são Milton Santos e David Harvey.
Essa foi a manhã de Camila, que não diminuiria o ritmo à tarde. Pelo contrário: numa sessão da Comissão de Direitos Humanos da Câmara presidida por Manuela D’Ávila (PC do B-RS), ex-presidente da UNE (que, “Ai que saudades dos meus 23 anos”, “mas é bonita a guria, hein?”), ela voltou a falar num espanhol desenvolto, apesar dos apelos da deputada gaúcha para que arriscasse um espanhol.
Na saída, voltou a falar com jornalistas, deixando esperar o presidente da Casa, deputado Marco Maia (PT-RS). Maia acabou abrindo a sessão da Câmara, mas deu um jeito de voltar a seu gabinete, arrastado por D’Ávila, para receber a chilena e ouvir o apelo para que o Congresso brasileiro enviasse uma comissão ao Chile para avaliar a situação de desrespeito aos direitos humanos.
Camila ainda participaria de um ato de mulheres promovido pelo Ubes (União Brasileira de Estudantes Secundaristas) e se encontraria com a ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário, encerrando seu dia às 22h. Antes da chegada da chilena, as garotas que esquentavam o auditório Nereu Ramos, na Câmara, puxavam palavras de ordem feministas inspiradas pelas Slut Walks (Marchas das Vadias, movimento iniciado em Toronto, Canadá, depois que um policial sugeriu que as garotas universitárias deveriam usar roupas mais discretas para evitar casos de violência sexual): “Se o corpo/ é da mulher/ ela dá pra quem quiser!”.
Camila, acompanhada da deputada federal Manuela D' Ávila (PC do B-RS), falou na Câmara


Por fim, voltou ao Chile. Camila encerrou, assim, sua jornada brasileira, já um tanto longe da imagem da “garota bonita” e “musa” que lidera as manifestações no Chile.

Sem escorregar jamais, às vezes olhando com ironia para os entrevistadores, evitando questões pessoais, mas não se negando a responder sem justificar, Camila terminou o dia 31 de agosto em Brasília depois de horas de entrevistas e articulações como uma líder estudantil que rompe barreiras – não apenas policiais, mas também de gênero, de idioma, ideológicas e territoriais.
 

Retirado do Opera Mundi
por Victor Nobre

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